Abate sem inspeção corresponde a 73% do consumo, motivando projetos de regularização e campanhas dirigidas ao consumidor.
Em setembro de 2004, o abate clandestino foi tema de capa da DBO, sob o título “Da Marginalidade à Carne com Grife¨. Na época, a reportagem de Maristela Franco mostrava números alarmantes: 40% dos animais no País eram abatidos sem inspeção sanitária. Passados 17 anos, o Brasil tem índices menores de abates não inspecionados cerca de 15%, segundo levantamento realizado pela Esalq/USP, em 2015, mas ainda sofre com a falta de estatísticas atuais e ações públicas articuladas que consigam por fim a esse verdadeiro “buraco negro” da cadeia produtiva, queixa já registrada no passado.
Existem 372 abatedouros irregulares no Maranhão.
Rita de Cassia Neiva Cunha
Eng. Agrônoma
Coordenadora da Campanha Abate Seguro
Se nos grandes centros urbanos come-se carne bovina de melhor padrão sanitário, em municípios do interior do País, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, vende-se o produto em feiras e açougues, sem condições mínimas de higiene, para ser consumido ainda “quente”, devido a hábitos alimentares arraigados da população.
É o caso do Maranhão, que tem rebanho de 7,8 milhões de bovinos, o segundo maior do Nordeste e o 12º do País.
Dados da Federação dos Municípios do Estado do Maranhão (Famem), divulgados em 2018, apontam que 73% da carne consumida no Estado vêm de abate irregular
Esse percentual elevado e preocupante ganhou repercussão nos últimos meses, com o lançamento da campanha Abate Seguro, que visa divulgar nas redes sociais, uma série de vídeos informativos sobre o tema, buscando: primeiro, conscientizar a população maranhense sobre os riscos de se consumir carnes não inspecionadas, segundo discutir a importância dos Serviços de Inspeção no estado, responsáveis por assegurar a qualidade dos produtos de origem animal aptos ao consumo humano.
DIFICULDADES ESTRUTURAIS
Recai sobre os órgãos públicos, boa parte dos problemas gerados pelo abate clandestino no Estado. Des de que serviço de inspeção sanitária foi descentralizado pela Lei 7.889, de novembro de 1989, o governo federal passou a inspecionar frigoríficos voltados ao comércio interestadual e internacional, repassando aos Estados a responsabilidade pela fiscalização dos abatedouros com atuação intermunicipal, e às prefeituras, o controle do abate local. Eis aí o cerne da questão: muitos governos estaduais e municipais estavam (e ainda estão) despreparados para assumir essa tarefa, seja de vido à escassez de recursos, seja por falta de mão de obra qualificada para realizar a tarefa. Esse desencontro se generalizou no Brasil, atingindo estágios críticos, como os do Maranhão.
“A partir daí, iniciamos um forte movimento liderado pelo Centro de Apoio ao Consumidor do MP, em parceria com a Aged, a Famem e outras instituições”, conta Francisco Saraiva, ex-presidente do Sinfa e hoje vice-presidente da União Nacional dos Serviços de Defesa Agropecuária (Unafa). Ele destaca os avanços dos últimos três anos, principalmente quanto à adequação de algumas plantas passíveis de regularização via SIM ou SIE.
Atualmente, o Maranhão tem 21 frigoríficos inspecionados, sendo 10 com Serviço de Inspeção Municipal, outros sete com estadual e quatro com federal, estas habilitadas para exportação e venda interestadual. Mesmo com números “melhores”, o Estado ainda sofre com a baixa capacidade instalada de abate inspecionado. “A carne processada pelos grandes frigoríficos não fica no Maranhão. As plantas com SIE atuam apenas em parte do Estado e as com SIE atendem somente 10, de um total de 217 municípios. Por isso, os índices de consumo de came clandestina são tão altos no Maranhão”, diz a engenheira agrônoma Rita de Cássia Neiva Cunha, assistente técnica do Departamento de Política Agropecuária da Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Pesca (Sagrima) e idealizadora da Campanha Abate Seguro. Segundo ela, existem 372 abatedouros irregulares no Maranhão. “São plantas que processam cinco animais por dia, cinco vezes por semana, em municípios que têm entre 10,000 e 50.000 habitantes. Esse é nosso grande desafio”.
REGIONALIZAÇÃO É BOA PEDIDA
Embora não seja vista como a única saída, a regionalização do abate, quando bem planejada, pode reduzir sensivelmente a clandestinidade, garante a agrônoma. Em 2018, o Maranhão iniciou um plano de consórcio de municípios para construir frigoríficos regionais inspecionados, visando eliminar esses abatedouros peque- nos. O programa engloba a modernização/adequação de frigoríficos já existentes ou a construção de novas plantas, a criação de entrepostos com câmara fria para recepção da carne em cidades distantes até 70 km do abatedouro regional, e a conscientização da população maranhense sobre os riscos do abate clandestino para a saúde pública e para o meio ambiente. No esquema “consórcio”, as despesas do abatedouro regional seriam divididas igualmente entre os municípios.
O plano de regionalização conta atualmente, com uma lista de 13 abatedouros municipais que necessitam de adequações para regularização, outros 34 a ser construídos em regiões estratégicas, para atender os municípios, e mais quatro privados. O objetivo é atender o Maranhão em sua totalidade, garantindo o fornecimento regular e seguro de carne bovina. Juntas, essas plantas cobrem 18 regiões do Estado. “Não é tarefa fácil, porque não é raro, por exemplo, chegamos no frigorifico e ele ser inviável para adequação, porque ficou parado durante anos. A melhor opção seria estimular a parceria público/ privada, já que o abatedouro é uma empresa e o governo não tem muita vocação empresarial”, dispara Rita, garantindo que ainda falta integração entre os órgãos, mão de obra especializada, recursos e uma política pública clara para avanços mais rápidos no Maranhão.
Sem fiscalização, não consigo concorrer com o abate de moita.
Edilberto Régis Lopes, dono de frigorifico municipal regularizado em Tutoia, MA
CONCORRÊNCIA DESLEAL
Bom exemplo do que diz a agrônoma é o caso de Edilberto Régis Lopes, o Beto das Carnes, que regularizou seu frigorifico em 2018, cansado de receber denúncias sobre a maneira que abatia animais em Tutóia, município a 324 km da capital São Luis. O processo para a carne saísse de seu frigorifico com o selo do SIE demorou anos e custou R$ 2 milhões, investimento que não trouxe o retorno esperado, devido à concorrência desleal dos abatedouros que continuam funcionando sem fiscalização na região. “O custo de um frigorifico é alto e a manutenção muito cara. Você não consegue concorrer com o abate de moita”, desabafa Beto. A Aged garante que tem feito vistorias e interdições, embora o processo não seja simples, “Fechamos um, abrem dois”, disse a instituição, em nota
Desde que foi regularizado, o frigorifico Lopes tem operado com 80% da capacidade ociosa, já que abate 21 animais/dia, mas tem capacidade para 91 cab/dia. A expectativa é de que, com a proposta de regionalização a partir da parceria público/privada, o estabelecimento possa abastecer regularmente cinco municípios (Tutóia. Barreirinhas, Paulino Neves, Água Doce e Araioses). Ampliando sua capacidade instalada. “Deve funcionar, desde que haja fiscalização efetiva. Do contrário dificilmente haverá adesão do setor privado”, avalia o proprietário, que tem uma rede de açougues e também uma boutique de cames na região, estabelecimentos para os quais ele reforça a necessidade de maior vigilância do Estado. “Não adianta fiscalizar frigorifico, se não houver fiscalização nos açougues, nos locais onde a carne é transformada em dinheiro. Se isso não acontecer, vamos continuar dando um passo à frente e dois atrás”. Observa Beto.