A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 32/20, da Reforma Administrativa, cuja votação é defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), além de afrontar os princípios de administração e de gestão pública aprovados nas urnas em nada contribuir para a profissionalização do serviço público, já foi superada pela eleição presidencial de 2022 e pelos acontecimentos em curso neste 3º mandato do presidente Lula.
Antônio Augusto de Queiroz*
A PEC da Reforma Administrativa, em tramitação na Câmara dos Deputados — equivocada sobre a natureza e formas de funcionamento do Estado — parte de 3 pressupostos falsos: o de superioridade do setor privado em relação ao setor público na gestão de políticas públicas; o de que o servidor público é ineficaz, ganha salários acima do mercado privado e trabalha pouco; e o de que o Estado é ineficiente e tudo que faz custa mais caro do que adquirir do setor privado. Além disto, a lógica da reforma proposta por Bolsonaro, essencialmente privatista e fiscalista, em nada se aproveita no programa do governo Lula sobre o tema.
Quando se compara o que propõe a PEC e o que diz o programa do governo Lula sobre Reforma Administrativa, pelo menos no plano retórico, fica patente o contraste existente, especialmente em relação ao papel e peso do setor público na interação com a sociedade e com o mercado, na relação com os servidores, assim como na melhoria do desempenho institucional e na eficácia e na efetividade da ação estatal na prestação de serviços públicos.
Enquanto a PEC prevê o fim da estabilidade para a quase totalidade dos servidores, mediante flexibilização e precarização das relações de trabalho no setor público, o programa do governo Lula advoga a revalorização desse importante mecanismo de proteção institucional do Estado e da própria democracia, que historicamente tem se mostrado 1 antídoto fundamental contra assédios e arbitrariedades cometidas pelo Estado-empregador.
Aliás, foi graças à estabilidade que, durante o governo Bolsonaro, os servidores de carreira resistiram ao desmonte dos serviços e da máquina pública, além de terem denunciado desvios e se recusado a cumprir ordens antirrepublicanas, especialmente durante o período da pandemia da covid-19. Sem essa proteção, o negacionismo e o preconceito teriam prevalecido na atuação estatal nos últimos 4 anos.
Enquanto a PEC tem como principal foco a flexibilização remuneratória e a redução das despesas com o funcionalismo, o programa sufragado nas urnas sinaliza para remuneração adequada, isonômica e previsível ao longo do ciclo laboral.
O novo governo promete, de um lado, a valorização profissional do servidor, porém com redução gradativa das disparidades remuneratórias entre carreiras e órgãos no interior da Administração Pública, e de outro, o combate aos privilégios remuneratórios e remunerações acima do teto salarial de algumas delas.
Nessa perspectiva, até o momento, o novo governo tem se mostrado coerente, pois concedeu reajuste salarial linear de 9% em 2023 e aumentou o valor do auxílio alimentação para todos os servidores públicos federais, além de ter promovido a abertura de processos negociais de cunho setorial para avançar em temas de reestruturação e profissionalização de carreiras e órgãos.
Enquanto a PEC 32 anula o papel das escolas de governo, deixando a capacitação e a progressão funcional como responsabilidade dos servidores e servidoras, o novo governo promete valorizar as competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) dos servidores desde a entrada no serviço público, tanto por meio dos concursos e cursos de formação e aperfeiçoamento, quanto pela qualificação em nível de pós-graduação.
De fato, desde a posse do presidente Lula, em janeiro de 2023, há preocupação direcionada para a capacitação permanente ao longo do ciclo laboral, tanto do desempenho individual no âmbito das funções precípuas e dos cargos públicos, quanto das organizações. A reativação e ampliação da atuação da Enap corrobora essa diretriz, que inclusive prevê a participação decisiva da escola nos cursos de formação e programas de ambientação dos futuros servidores.
Enquanto a PEC 32 prevê, estimula e reforça a competição interpessoal e a concorrência intra/inter organizacional no setor público, a sinalização do novo governo é de adotar a cooperação interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público.
Coerente com essa diretriz, o governo, por intermédio da IN (Instrução Normativa) 24/23, instituiu o Programa de Gestão e Desempenho na Administração Pública federal. Essa medida destina-se a empoderar as organizações públicas na formatação e implementação de programas próprios, a partir de arranjos de gestão de pessoas, que visam a ampliação do desempenho individual e organizacional, com o objetivo de propiciar melhores entregas de bens e serviços à população, regiões e empresas pelo Brasil.
Enquanto a PEC 32 determina a terceirização generalizada de serviços, mediante convênio e termos de cooperação com o setor privado e com os entes subnacionais, o novo governo tem anunciado novos concursos públicos para repor quadros e recuperar a capacidade estatal de prestar diretamente os serviços essenciais, especialmente em setores essenciais, como a fiscalização do trabalho e do meio ambiente.
Enquanto a PEC 32 cria obstáculos à ação coletiva das entidades dos servidores, por meio de mecanismos inibidores da organização e da atuação sindical no setor público, a orientação do novo governo tem sido de respeito e incentivo à liberdade de organização e à autonomia de atuação sindical, tanto no que tange às formas de (auto)organização e funcionamento dessas entidades, quanto no que se refere às formas de representação, financiamento e prestação de contas junto aos próprios servidores e à sociedade de modo geral.
Uma das medidas positivas nesse campo foi a reativação da MNNP (Mesa Nacional de Negociação Permanente), que instaurou sistema negocial composto por 3 tipos de mesas: a central, que tratará de questões transversais a todas as categorias com impactos normativos e orçamentários gerais; as setoriais, que versarão sobre questões não orçamentárias ligadas a pautas relativas às condições e relações de trabalho em cada caso concreto; e as específicas e temporárias, que vão cuidar dos processos negociais de reestruturação de carreiras e órgãos em perspectiva sistêmica. Além disso, o governo criou grupo de trabalho para elaborar proposta de regulamentação da negociação coletiva, fortalecendo o debate já em curso no senado, com o projeto de lei apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS).
Assim, diferentemente da visão do governo anterior e do atual presidente da Câmara, o desenho de Reforma Administrativa imaginado pelo novo governo parece indicar mudanças de natureza incremental e infraconstitucional, de um lado dirigidas para a valorização do servidor, e, de outro, direcionadas à melhoria do desempenho institucional agregado do setor público federal brasileiro.
Neste novo contexto, pós eleição e posse do presidente Lula, a única Reforma Administrativa que faz sentido é aquela que for capaz de promover inovações e aperfeiçoamentos institucionais, destinados a ampliar as capacidades estatais e assegurar entregas mais eficientes, eficazes e efetivas de bens e serviços à população, territórios e empresas. Ou seja, o novo governo, sob pena de incoerência, só pode patrocinar Reforma Administrativa que contribua para a ampliação e a melhoria do desempenho agregado do setor público, e sempre com respeito e valorização dos servidores públicos.
Portanto, a PEC da Reforma Administrativa, cuja finalidade principal é precarizar as relações de trabalho e reduzir gastos com pessoal, perdeu o objeto e não se justifica mais na atual conjuntura, tanto pela mudança de governo e de visão do Estado, quanto pela experiência da pandemia da covid-19, período em que restou demonstrado que, sem a presença forte do Estado e dos servidores, os cidadãos e empresas ficam entregues à própria sorte.
Assim, se o atual governo honrar os compromissos de campanha, em lugar do Estado mínimo, como prevê a PEC 32, atuará pelo Estado necessário, que seja capaz de criar as condições para assegurar crescimento econômico, estabilidade fiscal, inclusão social e prestar serviços públicos de qualidade. Agora é cobrar o cumprimento do que foi prometido e sufragado nas urnas em termos de Administração Pública.
(*) Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap e é membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República) – Conselhão.
Fonte: Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar