o setor público, ao contrário, a operação de individualização das entregas (bens e serviços) direcionadas direta e indiretamente para a coletividade é tarefa metodologicamente difícil, ao mesmo tempo que política e socialmente indesejável, simplesmente pelo fato de que a função-objetivo do setor público não é produzir valor econômico na forma de lucro, mas sim gerar valor social, cidadania e bem-estar de forma equânime e sustentável ao conjunto da população por todo o território nacional. Por esta e outras razões, portanto, a cooperação (ao invés da competição) é que deveria ser incentivada e valorizada no setor público, local e ator por excelência da expressão coletiva a serviço do universal concreto.
Há basicamente 4 fundamentos históricos do emprego público presentes em maior ou menor medida nos estados nacionais contemporâneos, a saber:
1) estabilidade na ocupação (idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social) para a proteção contra arbitrariedades cometidas pelo Estado-empregador;
2) remuneração adequada e previsível ao longo do ciclo laboral;
3) qualificação elevada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações; e
4) cooperação (ao invés da competição) interpessoal e intra/inter organizacional como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público.
A estabilidade na ocupação remonta a uma época na qual os Estados nacionais, ainda em formação, precisaram, para sua própria existência e perpetuação (isto é, consolidação interna e legitimação externa) transitar da situação de recrutamento mercenário e esporádico para uma situação de recrutamento, remuneração, capacitação e cooperação junto ao seu corpo funcional que, gradativamente, foi deixando de estar submetido exclusivamente às ordens feudais e reais, para assumir, crescentemente, funções estatais permanentes e previsíveis em tarefas ligadas, portanto, às chamadas funções inerentes dos Estados Capitalistas modernos e contemporâneos. Permanência e previsibilidade são duas características fundamentais das políticas públicas e da própria razão de existência e legitimação política do Estado, algo que apenas pode estar garantido por meio da prática da estabilidade do seu corpo funcional, além de outros fatores.
A remuneração adequada e previsível no tempo é condição de segurança financeira e de estabilidade emocional dos servidores, fatores necessários a qualquer pessoa inserida em uma relação de trabalho que apenas existe e se realiza em função do Estado, em favor da coletividade e em caráter permanente. Desta maneira, ela precisa ser adequada e previsível não apenas para que o servidor goze de segurança financeira e estabilidade emocional no desempenho de suas funções, dificultando ao máximo que ele possa sofrer qualquer tipo de assédio moral, captura externa, tentativa de extorsão ou qualquer outro tipo de corrupção, como que ele tenha que de suas funções precípuas se dispersar, prejudicando com isso o seu desempenho profissional no cargo público e, por extensão, o desempenho institucional satisfatório da sua organização junto à população.
É claro que tais fatores são também importantes para as relações capital-trabalho no mundo dos negócios, razão pela qual o processo histórico de regulação social do trabalho incorporou tais temas na defesa de contratos por tempo indeterminado, remunerações mínimas garantidas, pletora de benefícios e direitos laborais e sociais, negociações coletivas, direito de greve, acesso à justiça etc. Porém, diferentemente da ocupação no setor público, as ocupações no setor privado, mesmo aquelas contratadas sob o amparo das leis de proteção laboral e social vigentes, estão mais fortemente sujeitas aos ciclos econômicos e às discricionariedades e – por vezes – arbitrariedades dos empregadores. No mundo dos negócios, reinam – infelizmente de modo quase naturalizado nas sociedades capitalistas contemporâneas, sobretudo naquelas subdesenvolvidas como a brasileira – relações assimétricas e muitas vezes desumanas de poder, razão pela qual a regulação pública (externa e coercitiva) exercida pelo Estado, por meio do sistema de justiça, sobre as relações capital-trabalho, é tão necessária, ainda que insuficiente, para mitigar ou contra arrestar as tendências abusivas, predatórias ou socialmente injustas que em geral as caracterizam.
Já no âmbito do setor público, lugar por excelência da esfera pública, as relações laborais não são do tipo capital-trabalho, são relações estatutariamente assentadas no pressuposto da igualdade formal e real entre indivíduos e destes com o Estado-empregador, ente que representa a própria sociedade coletivizada. Nem por isso, como se sabe, prescindem de praticamente os mesmos direitos e deveres consagrados ao emprego assalariado típico, e também de semelhantes aparatos burocráticos de justiça, defesa e garantia de direitos em suas relações com o Estado-empregador.
Diante do exposto, fica clara a razão pela qual a proposta liberal-gerencialista de transformar a remuneração (fixa, adequada e previsível) do servidor público em uma remuneração flexível, contendo uma parte fixa mínima e uma outra variável, remunerada na forma de bônus extra por desempenho individual, afronta os princípios supracitados da segurança financeira e da estabilidade emocional. Uma vez implementadas no setor público, propostas de remuneração flexível tenderão a fazer aumentar – ao invés de diminuir! – a insegurança financeira e a instabilidade emocional dos servidores afetados, deixando-os mais expostos a vivenciarem situações de assédio moral, captura externa, tentativas de extorsão ou qualquer outro tipo de corrupção ativa ou passiva no desempenho de suas funções. Deste modo, ao invés de estimular um maior e melhor desempenho individual, ou incrementar a produtividade própria ou organizacional, medidas dessa natureza tenderão, na verdade, a acirrar a competição interna e a deteriorar as condições pessoais e coletivas de sanidade e salubridade no ambiente de trabalho.
Da mesma maneira que a remuneração, também no caso da qualificação e da capacitação, as propostas liberais-gerencialistas aparecem como insatisfatórias e contraproducentes ao bom desempenho pessoal e agregado do setor público. No setor público, devido tanto à amplitude de temas ou novas e inescapáveis áreas programáticas de atuação governamental, como à complexidade das mesmas em contextos de heterogeneização global e acirramentos nacionais e regionais crescentes, qualificação elevada desde o início nas carreiras e processo contínuo de capacitação pessoal e organizacional são exigências do mundo atual aos Estados nacionais soberanos.
Ambas as exigências – qualificação elevada desde o início nas carreiras e processo contínuo de capacitação pessoal e organizacional – colocam desafios imensos às políticas públicas de pessoal e sugerem atrelamento de fases e tratamento orgânico aos novos servidores desde a seleção por concurso, trilhas de capacitação e alocação funcional que combinem as vocações e interesses individuais com as exigências organizacionais de profissionalização da função pública, passando ainda pelas dimensões da progressão na carreira, da remuneração adequada e previsível em cada nível, dos critérios e condições de acompanhamento e avaliação, até o momento da aposentação. Tal política de pessoal no setor público, porque abrangente e complexa, apenas pode ser realizada sob a égide de abordagens holísticas, visando formar servidores críticos e conscientes da realidade brasileira em suas diversas dimensões. O aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado desse trabalho difícil e demorado de profissionalização da burocracia pública. Algo muito distinto da lógica liberal-gerencialista que prima pela oferta de incentivos individuais à capacitação do servidor, induzindo-o a um processo de especialização acrítica e a uma lógica concorrencial nefasta de progressão funcional na carreira.
Por fim, mas não menos importante, a cooperação interpessoal e intra/inter organizacional emerge como corolário dos atributos e fundamentos anteriores, colocando-se – ao invés da competição – como critério substancial de atuação da administração pública e método primordial de gestão do trabalho no setor público. No setor privado, a competição, disfarçada de cooperação, é incentivada por meio de penalidades e estímulos individuais pecuniários (mas não só) no ambiente de trabalho, em função da facilidade relativa com a qual se pode individualizar o cálculo privado da produtividade, dos custos e ganhos monetários por trabalhador.
No setor público, ao contrário, a operação de individualização das entregas (bens e serviços) direcionadas direta e indiretamente para a coletividade é tarefa metodologicamente difícil, ao mesmo tempo que política e socialmente indesejável, simplesmente pelo fato de que a função-objetivo do setor público não é produzir valor econômico na forma de lucro, mas sim gerar valor social, cidadania e bem-estar de forma equânime e sustentável ao conjunto da população por todo o território nacional. Por esta e outras razões, portanto, a cooperação (ao invés da competição) é que deveria ser incentivada e valorizada no setor público, local e ator por excelência da expressão coletiva a serviço do universal concreto.
Todos esses aspectos, e outros mais que se poderiam aqui explorar, justificam a criação de um regime diferenciado de contratação dos servidores públicos, um regime jurídico único nos termos da Constituição Federal brasileira em vigor (cf. art. 39, caput, CF-1988). Segundo entendimento geral, o regime jurídico dos servidores públicos civis consiste em um conjunto de regras de direito público que trata dos meios de acessibilidade aos cargos públicos, da investidura em cargo efetivo e em comissão, das nomeações para funções de confiança, dos deveres e direitos dos servidores, da promoção e respectivos critérios, do sistema remuneratório, das penalidades e sua aplicação, do processo administrativo e da aposentadoria.
Ou seja, nos regramentos já existentes para delimitação da ocupação no serviço público, já estão previstas possibilidades de avaliação e de monitoramento da atividade do agente público, além da aplicação de um amplo rol de sanções administrativo-disciplinares, que podem culminar com a expulsão de servidores estatutários da APF, em amplo espectro.
(*) Doutor em economia pelo IE-Unicamp, desde 1997 é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. Atualmente exerce a função de presidente da Afipea-Sindical.
FONTE: DIAP