O conhecimento é imaterial e, como tal, obedece a regras diferentes, em comparação com bens e serviços materiais. A presença dominante do conhecimento na economia moderna muda as regras.
Estamos em meio à reorganização da nossa economia, na qual os proprietários de plataformas estão aparentemente desenvolvendo poder que pode ser ainda mais formidável do que o dos proprietários de fábricas no início da Revolução Industrial. — Julieta Schor, 20201
Imagine 1 mundo em que cada pessoa do planeta tenha livre acesso à soma de todo o conhecimento humano. — Jimmy Wales, Wikipédia, 7 de março de 2024
André Gorz resume: “Se não for uma metáfora, a expressão ‘economia do conhecimento’ significa perturbações importantes no sistema econômico. Indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva e que, consequentemente, os produtos da atividade social já não são principalmente produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam essas materiais ou não, já não é determinado, em última análise, pela quantidade de trabalho social geral que contém, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimento geral, informação e inteligência. É este último, e não mais o trabalho social abstrato mensurável de acordo com um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas as mercadorias. É isto que se torna a principal fonte de valor e lucro e, portanto, segundo vários autores, a principal forma de trabalho e capital.”2
O que o mundo do dinheiro e o mundo do conhecimento têm hoje em comum é que ambos são, precisamente, imateriais, ou “intangíveis”, como encontramos em outros autores. Ou seja, ambos circulam na internet na velocidade da luz, na forma de sinais magnéticos, e no espaço planetário, alterando a antiga “territorialidade”, local de produção, fábrica ou fazenda, residência dos trabalhadores, espaços de socialização. O fenômeno se manifesta de forma ampla nas áreas que atualmente estão interligadas com comunicação e informação, como vemos nos gráficos abaixo:3
O gigantismo está ligado à característica técnica básica dos sinais magnéticos, que circulam no planeta quase que instantaneamente, e o domínio dos mais fortes rapidamente se torna planetário. O grau de oligopolização das atividades é evidente, e aqui se trata também dos sinais imateriais, magnéticos, da comunicação e da informação, em que os volumes, na era dos computadores modernos, já não são problema. A indústria da comunicação e da informação torna-se dominante, gerando a tão estudada batalha pela capacidade de atenção das pessoas, com o caos crescente de informação real, notícias falsas, marketing comportamental e sistemas de vigilância baseados na invasão de comunicações pessoais.
Ainda mais impressionante é a osmose gradual dos subsistemas da economia imaterial, dos sinais magnéticos, quer representem dinheiro, conhecimento, informação ou comunicação, todos tendo em comum, nesse eixo principal para o qual se orientam a economia e a apropriação de valor, o fato de banharem o planeta, chegarem a qualquer pessoa e serem controlados por número limitado de megacorporações. É interessante, nesse sentido, que a Amazon trabalhe com acesso a informações para terceiros, além da intermediação comercial, enquanto, por sua vez, a própria Amazon — mas também Google, Facebook, Apple, Microsoft — é parcialmente controlada pelos 3 maiores gigantes financeiros, BlackRock, Vanguard e State Street. Isso cria universo de controle multissetorial, com impacto planetário.
E não é secundário que também sejam predominantemente norte-americanos e estejam ligados à NSA e a outros sistemas de informação política, gerando a guerra contra a Huawei, Tiktok e outras corporações chinesas: os “mercados” se tornaram mais políticos, a política se tornou mais uma ferramenta para as corporações. Em outras palavras, ao rentismo que drena os recursos dos acionistas no topo da pirâmide financeira global, devemos acrescentar o controle algorítmico das pessoas e a submissão do universo produtivo à lógica do acionista vinculada à maximização de dividendos, e cada vez menos da parte interessada. O rentismo se torna um modo de produção. Esse não substitui as empresas tradicionais, sejam elas industriais, agrícolas ou de vários tipos de serviços, ou mesmo corporações privadas de saúde, ou universidades, mas as submete à sua lógica. Não se trata apenas de dreno de recursos e da formação de poderosa elite rentista global: esse muda profundamente a forma como nos organizamos como sociedade.
O Facebook ganha 98,1% do seu dinheiro por meio de publicidade. Pode nos parecer gratuito, mas as empresas pagam a Zuckerberg e esse dinheiro é incorporado nos custos de tudo o que produzem. E pagamos tudo na compra dos produtos dos serviços. Em 2022, a Alphabet teve lucro líquido de 21,1%; a Meta, 19,9%; a Apple, 25,3%, e a Microsoft, 34,1%.4 Esses lucros estão embutidos nos preços que pagamos. Novo relatório que examina as causas da inflação demonstra que a ganância corporativa e o aumento dos salários dos CEO levaram a custos superiores ao necessário para os consumidores americanos nos últimos meses.
O relatório, da organização progressista Groundwork Collaborative, constatou que, somente nos 2 últimos trimestres econômicos, 53 centavos de cada dólar de aumento de preços inflacionários foram devidos a lucros corporativos.”5 Na comunicação e em atividades semelhantes que envolvem intercâmbio, você precisa usar o veículo que os outros usam, ou ficará isolado. Isso se torna “monopólio de demanda”, e eles cobram o que querem. A propriedade privada, na ausência de regulamentação ou concorrência, leva a sistema em que esses o conduzem pelo nariz.
Há enorme contradição entre o fato de que o conhecimento em sua forma digital pode ser transformado em universo mundial de acesso aberto, enriquecendo a todos, e a guerra das principais corporações Gafam para chamar sua atenção e manipular seu comportamento. Isso resulta na deformação de nossas prioridades, conforme os interesses corporativos. Um exemplo é a explosão do câncer: “A previsão é de mais de 35 milhões de novos casos de câncer em 2050, um aumento de 77% em relação aos 20 milhões de casos estimados em 2022. O rápido crescimento da carga global de câncer reflete o envelhecimento e o crescimento da população, bem como as mudanças na exposição das pessoas a fatores de risco, vários dos quais estão associados ao desenvolvimento socioeconômico. O tabaco, álcool e obesidade são os principais fatores por trás do aumento da incidência de câncer, sendo que a poluição do ar ainda é um dos principais fatores de risco ambiental.”6 Bem, tabaco, álcool e obesidade estão prosperando, com marketing poderoso, mensagens individualizadas e muito sofrimento.
O controle da comunicação também está nas mãos dos principais fundos de gestão de ativos. “O setor é dominado por apenas 3 gigantes gestores de ativos americanos — BlackRock, Vanguard e State Street, as ‘Três Grandes’ — sendo a BlackRock o claro líder global. Em 2017, as Três Grandes juntas tornaram-se as maiores acionistas de quase 90% das empresas do S&P 500, incluindo Apple, Microsoft, ExxonMobil, General Electric e Coca-Cola. A BlackRock também possui grandes participações em quase todos os megabancos e grandes meios de comunicação.”7 Esses também são os principais acionistas das corporações Gafam. Para que conste, Larry Fink, da BlackRock, administra 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento de Biden é de 6 trilhões de dólares.
Estamos, portanto, diante de acesso permanente à nossa atenção consciente (a indústria da atenção), em oligopólio de escala mundial, com marketing comportamental adaptado às nossas características individuais, atingindo bilhões, centrado na maximização dos retornos financeiros (independentemente do impacto sobre nossa qualidade de vida ou sobre os desastres ambientais) e canalizando enormes retornos para o 1% mais rico, com amortecedor político de classe média alta nos 10% mais ricos.
Comunicação, informações privadas, marketing e finanças se misturaram ao controle social, cultural e político geral. E isso ocorre em escala global, enquanto as tentativas de regular o sistema são fragmentadas em muitos países. Não temos nenhuma regulamentação significativa em escala global, mesmo que a UE tenha conseguido criar algumas regras.
A figura acima mostra a escala da deformação sistêmica que estamos enfrentando. O 1% mais rico detém mais da metade das ações e dos fundos mútuos, o que significa que esses concentram os fluxos de excedentes financeiros drenados de toda a economia. Os 9% seguintes, reserva política de “investidores” de classe média alta, também lucram e tornam o sistema politicamente mais forte. Os 90% inferiores não “investem”, dificilmente chegam ao fim do mês e se endividam com mais frequência, contribuindo para o sistema por meio das taxas de juros.
Os dados detalhados do WID (World Inequality Database), a análise de concentração de riqueza dos relatórios do UBS, os estudos de impacto geral da Oxfam, bem como os estudos de países específicos, em particular o endividamento no Sul Global, mostram como estamos longe do que chamamos de acumulação de capital produtivo. Isso não é capitalismo, é rentismo improdutivo. Não é a Indústria 4.0, como tantas vezes mencionado, mas o resultado da revolução digital. O fato de chamá-lo de “indústria” permite que ele tome emprestada alguma legitimidade de época em que a produção de bens e serviços úteis era a espinha dorsal do capitalismo. Mas é dreno improdutivo, que nos empurra para catástrofe social e ambiental. E só podemos acenar com a cabeça para certo número de mensagens personalizadas que recebemos, quer as solicitemos ou não.
Tudo isso é absurdo, considerando, como comenta Jimmy Wales, da Wikipedia, que essas tecnologias poderiam nos permitir ter acesso inteligente ao que efetivamente queremos. Quanto aos gigantes financeiros, bem, o dinheiro é nosso, mas está fora de nossas mãos, e muitas comunidades estão recuperando o controle.
(*) Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do “Sistema S”. Autor e coautor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org
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1 Juliet Schor, After the Gig: how the sharing economy got hijacked, and how to win it back, University of California Press, 2020, p. 151, citando Martin Kenney e John Zysman.
2 André Gorz, L’immatériel, 2003.
3 TNI, Transnational Institute, Big Tech: the rise of Gafamt, 2023.
4 Pallavi Rao, Visualizando como as grandes empresas de tecnologia ganham bilhões, Visual Capitalist, 18 de dezembro de 2023.
5 Chris Walker, Greedflation, Truthout, 22 de janeiro de 2024.
6 OMS, Global Cancer Burden Growing, Comunicado de imprensa, 1º de fevereiro de 2024.
7 Ellen Brown, Meet BlackRock, 21 de junho de 2020.